Os que ainda se dão ao trabalho de ligar a televisão nos dias que correm saberão do que vou falar agora. É daquele refrão que ressoa em todos os canais de notícias. De meia em meia hora. Aquele eco, cadente como um velho relógio de parede ou um alarme avariado: extrema-direita, extrema-direita, extrema-direita. Um Pim! Pim! Pim! que badala. Como um pêndulo. Sem contradança.
Em tempos, as crianças tinham medo do lobo mau. Hoje têm medo de um homem engravatado que diz umas coisas num comício. Ou de um sujeito de cabelo rapado a segurar uma bandeira (céus, uma bandeira). São os novos monstros. E o que pode um pai perante isso? Vê-se, inevitavelmente, forçado a apagar o mapa antigo da infância: aquele pequeno território onde ainda viviam o Pai Natal, o Robin dos Bosques e a Alice. E tem de dizer ao filho, com toda a calma possível, que os monstros não existem. Sabendo que isso não é bem verdade. Coitado.
Veja-se o caso seguinte. Não nomeio por uma questão de eficácia.
Um painel de comentário num canal de notícias por cabo. O tema são as migrações, as fronteiras, as convulsões sociais e outras palavras técnico-apocalípticas da mesma vulgata. De um lado, o liberal: enfático nas ideias, pontifical no tom. Do outro, o conservador: um académico prudente, um Valéry no trato, argumentando com pinças, sem deixar cair o rigor. E, ao centro, o moderador. Que todos supomos neutro.
Pois esse moderador decide (no tom, nos olhos, nas pausas) que o conservador representa, calma, esperem: a EXTREMA-DIREITA. (PIM!). Não o disse assim, claro. Disse-o com um ponto de interrogação no fim de cada frase. É um truque. Cada questão é um projéctil. Uma exclamação disfarçada. Deixaram de ser as legítimas perguntas do bom e velho jornalismo: que procuravam, que escavavam. São teses disfarçadas de dúvida.
Não é preciso ser perito em análise de discurso. Basta estar acordado. Ouvir a entoação, fazer contas aos minutos de antena, medir a subtileza com que um é interrompido e o outro é amparado. O moderador não precisa declarar nada. A parcialidade está nos gestos. Está no silêncio. Está, às vezes, na falta de chá.
O conservador, coitado, lá faz o que pode. É encostado à parede, obrigado a responder pelos filhos dos outros: — “Ódio?! Remigração!? Extrema-direita?! (PIM!). — “Hã... bem…” balbucia antes da próxima interrupção. O moderador, de dedo em riste e olhar severo, não relata acontecimentos, ameaça a falta disciplinar. Complacente com quem se senta à sua esquerda.
Aí, com o liberal, a empatia é explicita. Dá gosto de ver. Concordâncias em geral. Afinidades em particular. A diferença está nos sinais de pontuação.
E assim lá se vão mostrando os distúrbios provocados por quem vem da tal extrema-direita (pim!): os directos, as reportagens de fundo, os especialistas em alerta. Quando calha os protagonistas serem os malucos do outro lado da barricada, o tom muda. É como se houvesse um acordo tácito: não há desordem se a causa for luminosa. Partem montras? Estão a reagir. Acorrentam-se, despejam baldes de tinta? Estão a lançar temas para o debate. Ocupam um bairro e proclamam independência? É um laboratório comunitário. E a notícia, que devia narrar, ajoelha-se perante o caos. Literalmente.
O problema não é haver convicções. Mais as houvesse. O problema é embrulhá-las no celofane da imparcialidade. Quando até o tom de voz toma partido, o veredicto está decidido: extrema-direita. (pim!)